terça-feira, 26 de junho de 2007

O Grito

Eu chegava em casa sempre no mesmo horário, pouco depois das nove da noite. Naquele dia, não foi diferente. Saí a pé do escritório, subi os dois quilômetros da avenida deserta, parei no mercado e peguei os pães e a salada de pimentão que a atendente já havia reservado. Tudo exatamente rotineiro.

Paguei com a nota de dez reais, recebi meu troco em moedas e segui minha caminhada para casa. Faltavam poucos quarteirões. A vida seria aquilo? Um roteiro programado e quase sem alterações? Pensei por dois segundos e só. Nunca fui de pensar. Sou fã incondicional da inércia e da ação do tempo.

Entrei no prédio quase sem fazer barulho, nunca gostei de ser ouvido. O segurança me viu, mas tudo bem, ele sempre me via e estava lá para aquilo mesmo. Ele justificava a merda do salário dele.

Comi no apartamento quase vazio, entre a poeira do chão, a cadeira de plástico da sala e a TV cheia de ruído. Abri a janela para tomar um ar. Ninguém para ver. Que tipo de gente habitava aquele lugar? Será que todos faziam como eu, entrando às escuras, ocultando o barulho das chaves, subindo as escadas nas pontas dos pés?

O silêncio me chamava para a cama. A cama pedia um livro. E assim foi, direto para meu mundo mais agitado e aventureiro. Aquele cara, o do livro, era um bendito filho da puta. Bebia todas, comia todas. Naquela noite, lá estava ele em uma nova investida sexual. Vai, rapaz, boa sorte.

Não houve tempo nem para as preliminares. A vizinha me despertou. Sim, a vizinha muda e quase invisível. A bonitinha da porta ao lado. Enfim, vida no prédio fantasma. E vida com 'v' maiúsculo, diga-se. Saí do mundo do meu livro por causa dos gemidos nada abafados da mocinha.

Aos poucos, aquela euforia sexual toda podia ser compreendida. Ok, eu colei o ouvido na parede para ouvir melhor. Instinto jornalístico, puramente. E somente. E não é que a fantasminha gostava do negócio? "Vai, mete." "Enfia, enfia." "Mais forte, mais forte." Eu, do meu lado, comecei a torcer junto e, confesso, cheguei a repetir algumas palavras, quase gritando. Onde aquilo acabaria?

Pois acabou em grande estilo. "Isso, isso, enfia tudo no meu cu!", gritava a vizinha revelação do ano. "Assiiiiiiiiiiiiiiiim..." A vida é injusta: eu jantando salada de pimentão com pão e alguém jantando a minha vizinha. "Bom apetite, caralho!"

Tive então a grande idéia. Para que deixar tudo calmo se é possível causar constrangimento? Me postei na sala, liguei a TV cheia de ruído, sentei na cadeira de plástico e esperei. Com a porta para a rua aberta. Realmente sou um gênio. Não perderia o casal saindo por nada.
Provavelmenete me olhariam, dariam um 'boa noite' sem jeito e iriam. Bastava. Sou um gênio.

E também sou impaciente. Foram duas horas de uma espera longa e angustiante. Eu já cochilava quando ouvi a porta ao lado abrir. Me ajeitei na cadeira, fingi naturalidade e, óbvio, fiquei olhando para o corredor. Primeiro saiu uma vizinha bonitinha. Vestia uma camiseta, um short azul e parecia desconfiada, a arrombada. Me olhou de relance. Não disse uma palavra. Cadê o puto comedor de cu?

A moça parou no corredor e deu passagem para seu par. Seu par, literalmente. O comedor de cu era, na verdade, uma comedora de cu. Toda sorridente, vejo outra vizinha, a do apartamento de baixo, descer as escadas sorrateira, ainda com aquele cabelo úmido de poodle.

A porta do lado fechou. Eu sacudi a cabeça, perplexo. Essa merda seria um sonho? Não era. Fiquei paralisado na cadeira de plástico por mais uma hora. Quer dizer que eu comia pimentão e a vizinha de baixo comia o cu da vizinha do lado? Uau, o prédio não era fantasma afinal. Mas assustava.

Fui ao banheiro, tomei um ducha, escovei os dentes e voltei ao meu quarto. Só me restava
dormir. O silêncio, senhor de quase todas as horas, estava lá novamente. Mas eu tinha algo a fazer. Levantei da cama, fiz uma pose ninja e bati os pés no chão com força, repetidas vezes. E esmurrei a parede da vizinha do lado como se fosse um fã do Mike Tyson, repetidas vezes. Ambas tinham de estar acordadas agora.

Parei, contei até cinco e gritei em alto e bom som: "Vão tomar no meio dos seus cus!" Ninguém respondeu. Eu dormi como um anjo. E nunca mais ouvi uma metida naquele prédio.

11 comentários:

Creco disse...

Conto erótico com um quê de Nelson Rodrigues. Sensacional.c

Anônimo disse...

Por incrível que pareça, essa história fica ainda melhor lida do que ouvida horas depois do acontecido. Me lembro bem do episódio. Bem contado, Piera!

Anônimo disse...

Melhor do que os trechos mais picantes de "A Casa dos Budas Ditosos"... Excelente!

Anônimo disse...

Fenomenal!

Onde é mesmo que vc mora?

Ricardo Pieralini disse...

Quem é mesmo anônimo?

*Carol Carolina* disse...

Perfeito!
Imagino sua cara,
expressão, as vizinhas, o pimentão...

*risos*

morar sozinho não é fácil.

mas ter uma colega de trabalho gostosona que te tira atenção, vale mais um conto erótico...

Haja inspiração!

beijos de coelha

Anônimo disse...

Anônimos geralmente são pessoas que preferem não se identificar. Pra deixar a vida seguir, leve.

Anônimo disse...

Olá!
Gostei do blog, muito legal!
Parabéns!

bjos
Pri:)

Anônimo disse...

É mesmo sensasional, Piera!

Anônimo disse...

ahahaahahahahahahhahha
ahahahahahaahahhahaha

devia ter gritado: "enfia este pimentão no meio de seus cus"

Cristiane Benedicto disse...

Lindo!!! Amei!!
Parabéns!!!
Sucesso!
Namastê