quinta-feira, 21 de dezembro de 2006

Acento

Escrevo sem acento pois me dou por vencido
Esta maquina aqui nao tem traco
Nao tem crase
Nao tem nem o mais simples
Grave
Nao tem nem exclamacao
Grave bem

Entao dialogo sem travessao, sem aspas
Numa labia que se arrasta sem pontuacao
Numa eterna afirmacao
E ainda ha mais faltas

O que somos com a ausencia de interrogacao
O que somos sem os infimos acentos

Apenas um emaranhado sem sentido
Uma frase atras da outra

Coisa solta

Coisa tola
De impossivel traducao

Escrevo sem acento em minhas maos
Sou peito oco a bater sem coracao
Tenho alma escura, sem transparencia
Vivo enfileirado, surdo, mudo, cego

Sem aspas, sem travessao

Esta eterna reticencia

quinta-feira, 16 de novembro de 2006

Fim

Parece o fim dos tempos
Mas chega assim o vento
Age como ungüento
Subverte o que era fim
Afasta todo o tormento
E faz próximo o momento
De pensar: ainda é tempo

quarta-feira, 11 de outubro de 2006

Voar

O avião foge de você e me leva pra onde não quero ir
Voa alto, eu vôo alto, faz tempo ninguém quer me ouvir
Cadê aquele pedaço de chuva
Que cobria nossas roupas, revelando tudo em nós

O avião sai daqui e ninguém há de imaginar
Que quando eu vim para cá eu pensava em apagar
Me fui, mas volto de onde parei
Daquele pedaço de solo, do beijo que eu nunca dei

Não anoitece esse sol que é meu despertar
Não diz pro mundo mudar, ele é nosso estar
Mas aqui, assim, dentro do avião
Sonho que o sonho me leva pro seu coração

terça-feira, 3 de outubro de 2006

Hoje

Hoje lembrei daquele primeiro amor
Era ela tão pura e tão segura
Era eu tão impreciso, tão indeciso
E assim se deu... eu a chorar, a não ir

Hoje lembrei que décadas se foram
Eram tão puras e tão seguras
Era eu tão impreciso, tão indeciso
E assim fiquei... eu a mudar, e não sair

Hoje lembrei que o tempo não voltará
Éramos tão puros e tão seguros
Éramos precisos, decisivos
E assim mudei.. eu a voar, e não partir

Hoje notei que daquele primeiro amor
O quanto de mim que ficou, passou
E agora eu preciso, ainda que impuro
Assim decidir... eu a rir, ou te manter aqui

Cedo

Chego em casa cedo, quase sem falar
O coração na mão, e um copo de vinho
No mundo, nunca mais ficarei no chão

E ainda que a lógica insista em negar
Nunca mais cairei, nunca sangrarei
O sol da janela me diz: saia daqui

Eu abro o armário, dobro o roupão
Viro o disco, aceito dançar a canção
E assim, sem contar, tudo se vai

Como o amor do refrão, que vem dizer
Que vale a pena viver sem sofrer
Ainda que o peito teime em doer

Pois estou aqui só pra contrariar
Caio do barranco e insisto em ver
O mar está ali pra me acolher

Azul em reluzir, ondulando o tempo
Mas o vinho nesta taça já não basta
Pra essa loucura sem defeito

Transfigurando a ida em vinda
Sem jeito quando chego em casa
Eu cedo, quase sem falar

sábado, 16 de setembro de 2006

Puta

A puta da esquina não é mais puta
Ela tem uma bolsa e uma blusa roxa
Pinta o olho de azul e pisca um olho
Ainda se lembra de brincar de roda
Ainda pensa que esta vida é foda
E espera algum dia sair dali

A puta da esquina não é mais puta
Não frequenta clubes da elite
Não se lava com coca e whisky
Beija no máximo três por noite
Se arrepende por algumas dores
E ainda sonha com o mundo melhor

Na frente da puta passam putas
Fedendo a sexo e a tormento
Eles querem fingir que o que há dentro
Que o que há dentro é só fingimento
Só que a puta não liga, ela sorri
A puta da esquina é a melhor daqui

A puta da esquina não é mais puta
Ela é uma santa deste mundo torto
Fez pacto com a luz pra andar direito
Quando acende o cigarro e traga o vento
Pensa só que as putas, as de verdade
Gritam, gemem e choram com sinceridade

Viver

Vim

Pra não morrer
Pra não morrer
Pra não morrer
Pra não morrer

Ainda
Quis

Reencontrar
Reconhecer
Recomeçar
Reinventar

Ainda
Disse

Pra te maldizer
Teu maldizer
Teu mau sabor
Teu mau amor

Calado
Fui

Sem chorar
Sem lamentar
Sem lembrar
Sem viver

De novo
Vim

Pra não morrer
Pra não morrer
Pra não morrer
Pra não morrer

Ainda
Assim


Morro
Morto
Morto
Morro

Assim
E fim

sexta-feira, 15 de setembro de 2006

Antes, agora

Meu filhote me faz sorrir, quando estou assim tão mal
E não há vento que passe aqui, que me faça desistir
De seus beijos, de seu pêlo, de você a me abraçar
Pois a chuva, eu sei, um dia vai passar...

Vem e chora e pula em mim, este amor incondicional
O sol bate em meu corpo e aí, eu me vejo resistir
De toda dor, de todo ardor, nasceu pra me salvar
Já que o escuro, eu sei, eu dia vai clarear...

Diz que me ama, ninguém há de duvidar
Fala do seu jeito, torto de me amar
E mesmo que digam que o amor tem partida
Que a força há de secar...

Antes, agora, o mundo se abrirá
Antes, agora, meu mundo é seu estar

sábado, 9 de setembro de 2006

Tá, vai dizer que é pra ser sofrido

Você nem limpou o sangue de outrora e já vive de manchar outra aurora, sequer deixou cicatrizar o coração, mas insiste em contrariar a razão

Tá, vai falar que é culpa da sorte

Chora pelos cantos, fala que é ruim, reclama do céu, como se fosse assim, diz que o sol é forte, que a chuva molha, mas em casa só se deita, disfarça e chora

Tá, vai correndo maldizer a vida

Como se não fosse você sempre a razão, como se não fosse sua cada nova decisão, vai, se esconde irmão, que assim lhe escapa a vida, morre o amor e a sorte acaba enfim

sexta-feira, 8 de setembro de 2006

Mulher

Jamais haverá mulher como aquela que havia
Cuidava de mim de noite, amava sem fim de dia
Me afagava na cama, no banho ela me ardia
E mesmo sem haver chama, o fogo não se extinguia
Comia sem sal e amava, amava meu gosto de sal
Do som de um vinho aberto, ela fazia especial
Zelava pelas suas rosas, banhava de flor o mal
Transfigurava o opaco em brilho celestial
Mas eis que voltaram nuvens, eis que choveu aqui
E ela, já tão entregue, quase não me viu partir
Chorou o seu choro limpo, limpou seus olhos de atriz
Fez da vida seu rumo, fiz da vida o que bem quis
O vinho ainda esquenta o fogo que se extinguia
O banho ainda lava este ventre que nos ardia
Mesmo a noite dorme à espera de um novo dia
Mas jamais haverá mulher como aquela que havia

quarta-feira, 6 de setembro de 2006

Beijo

Um beijo pode ser um beijo
Uma troca de cor
Um alento pra dor
Um início de amor
Minha boca na sua
Alma ficando nua
Língua a roçar sem medo
Uma troca de segredos
Início de algo maior

Ou pode ser só um beijo
Pode-se ser um beijo e só

Virei canção

Escrevo quando rio, escrevo quando choro
E acho que, acima de tudo, escrevo pra viver

Porque o que passa, fica em mim
Fica sim e nada me esquece do que é bom

Então escrevo mais, chorando ou rindo
Indo ou vindo, apenas ficando aqui

E quando choro, sai esse mar de dor
Vira essa ressaca infinda, esse fim de mim

Mas, se é que alguém há de perguntar,
Hoje escrevo apenas para gargalhar

Pois o riso também vive de sonhar
E hoje sonho. Me diz, para que despertar?

Sonho um: estou aqui, você ali, estamos sós
Sonho dois: você ali, passei ali, ficamos nós

Sonho três: você, eu, ficamos, estamos
O quatro pode ser realidade. Ou pode não

Você sabia que o que me atrai é a indecisão?
E você, está disposta a mudar meu coração?

Ah, você: prazer, é a voz do não. Bate, bate
Não estou em casa. Saí pra viver. Virei canção

sábado, 26 de agosto de 2006

Soneto da união

Vida, que quase não era
Cria cores, que não se sentia
Muda o tom, constrói melodia

Vira sol, que traz primavera

E de noite, no meio da gente
Faz-se deste mundo um furor
Unem-se corpo, carne e calor
E a água parada já faz corrente

Pois se a saudade o tempo apaga
A novidade a distância alimenta
E vira esse suor que me arrebenta

Pois se a dor o analgésico cessa
Esse tremor me invade constante
E me sinto contigo em cada instante

quinta-feira, 24 de agosto de 2006

Olhos

Já ouviu falar nos olhos que arrepiam?
Eles deitam em você e nunca dormem
Eles colam em você e nunca calam
Eles vivem e só lhe fazem viver mais

Esses olhos, meu amigo, esses olhos
São como duas eternas luas cheias
Uivam para que a noite acorde
Dormem sempre em suas retinas
Acordam o seu sono de não viver

Já ouviu falar desses olhos, irmão?
Viu essa luz de paz e absolvição?
Você não sabe, ninguém há de saber

Que esses olhos que me arrepiam
Nasceram do lugar mais improvável
Correram este corpo outrora instável
Ferveram no meu sangue o amanhecer

São esses olhos, esses seus olhos
Que me vêem assim, tão diferente
Duas pérolas, dois novos expoentes
Ninguém sabe o que será da gente?

Já ouviu falar de seus olhos assim?
Pois bem, se aqui há paz e perdição

Faço, mesmo ateu, minha oração

E que venha calor
Que venha amor
E salvação

domingo, 13 de agosto de 2006

Ninar

O dia insiste em fazer
O que eu insisto em negar
Faz de mim seu ser assim
Sai da sombra e nasce enfim

Se a noite insiste em cair
Procuro então te seguir
Pelos fins desse lugar
Para viver pra te adorar

Mas o coração teima em rir
Do que insisto em fingir
Algo em mim há de ocultar
Um bonfim pra te deitar

Nada mais pode negar
Este aqui é seu pulsar
Isso em mim é para ter
Todo um sonho só pra ti

Deita aqui
Dorme aqui
Deixa eu te ninar

terça-feira, 8 de agosto de 2006

Este eco

Há um tempo para cada coisa
E há coisas que não têm tempo
Pois às vezes o tempo foge
Ele escapa com o vento

E o tempo vira um exemplo
E se há ainda um jeito
Um modo de contar o tempo
O tempo que ele desfaz
O vento é amigo do medo
E o medo só sopra em paz

Já fui amigo do tempo
Narrava em mim cada trecho
E hoje, aqui, do meu jeito
Cavo e me escondo de mim

É só pra disfarçar o tempo
É só pra esconder o medo
Mas o tempo me faz ruim
O tempo me dói e me arde
Só me diz quando é tarde
Tarde é noite, escura em mim

Conto o tempo com os dedos
Sigo, fixo, eu perco a conta
Mas, então, o vento adverte
O tempo ainda espreita

Ele estreita e nunca deita
E se deleita com o medo
Pois o tempo é meu irmão
É meu sermão

É meu ímã, meu senão
E se ele passa, passo não
Se ele fica, fica o vão
E este eco... fica e fim

terça-feira, 4 de julho de 2006

Samba do amor partido

Se o homem chora, e o choro seca
E a voz de outrora, não se ouve agora
É porque a dor por um lado estanca
Mas por outro sangra
E sangrando mostra
Tudo que vai, vem
Só você não volta

Se o homem ri, e o riso cansa
E o furor de antes já virou lembrança
É porque o impulso por um lado puxa
Mas por outro breca
E brecando mostra
Tudo que vai, vem
Só você não volta


Se o homem é tolo, e não é criança
E o seu brinquedo já virou sucata
É porque a infância por um lado é bela
Mas por outra acaba
E acabando mostra
Tudo que vai, vem
Só você não volta


Volta vai, vem
Que o homem chora
Volta vai, vem
Que o homem ri
Volta vai, vem
Que o homem é tolo
Volta vai, vem
Que o homem ama
Só você não nota

segunda-feira, 3 de julho de 2006

Doramor

As diferenças entre a dor e o amor são o acréscimo da vogal e a troca da consoante. De resto, sobram lágrimas incuráveis, saudades infindas e uma eterna inspiração para o cancioneiro popular.

segunda-feira, 26 de junho de 2006

Conselho

Não quero conselho, quero calma
Quero esperar o que me virá sorrir
E quem me faz sorrir, se eu sei?
Quem me faz vibrar de uma vez?

Não quero conselho, quero calma
Quero estirpar toda minha mágoa
E quem me dita assim, se eu conheço?
Mora logo ali, tem endereço?

Não quero conselho, quero calma
E a experiência nessa hora falha
E basta esse amor, se um lado cala?
Falha todo o plano de existir?

Não quero conselho, quero alma
Não quero fermento, quero água
Não quero tormento, quero calma
Anonimamente, vou vivendo

E mesmo quem não mostra a cara
Imagina que se agitar o vento leva
E basta um nó, se a dor não sara?
E algum conselho, nessa hora basta?

sábado, 17 de junho de 2006

Sábado

Tirei o sábado pra chorar

Pra lembrar de tudo que perdi
Que perdi você
Que perdi a piscina
Que perdi o riso
Que perdi o sol
Que perdi o carro
E as músicas no carro

Tirei o sábado pra chorar

Pra lembrar de você
Do seu cheiro
Do seu gosto
Do seu gozo
Do nosso jeito
De nós
E do mundo de nós

Tirei o sábado pra chorar

Sem alarmes, sem surpresas
Ouço tanta coisa
Nada me diz o que ouvir
Só queria te ouvir
Só queria voltar
A viver

Ao lixo a métrica
Ao lixo a glória
Ao lixo meu egoísmo

Só te queria aqui
Que saudade!
Quanta dor
Até quando?
Ainda estou aqui
Ainda

quinta-feira, 15 de junho de 2006

Mão horra noje

Não morra hoje
Não morra hoje
Não morra hoje

Hoje a morte saiu
Foi visitar um primo
Bêbado de trabalhar
Foi visitar o caos
E dividir umas tarefas

Não morra hoje
Não morra hoje
Não morra hoje

Espere a morte voltar
Ela estará cansada de caos
Quererá um pouco de paz
E te valerá sem dor, pois
A morte pode ter compaixão

Então,

Não morra hoje
Mão horra noje
Hão norra moje

E adeus!

terça-feira, 6 de junho de 2006

Súplica

Essa é só mais uma súplica de amor
Me ame!
É tola assim, mas cheia de fé e dor

Dispensa o gesto de café na cama e cartão em flor
Troca o beijo pela reza,
O medo pela raiva,
A esperança pelo pavor

O coração, aqui, sangra e já não pulsa
Me ame!
E ainda se diz que há pureza no amor

Essa é só mais uma história de horror
Me mate!
Simples assim, sem dó e sem dor

Dispensa a piedade com disfarce de suor
Troca o beijo pelo sopro,
A pressa pela calma,
O grito pelo torpor

A alma, aqui, gela e já não jura
Me mate!
Há sim, meu amigo, motivo para o horror

sexta-feira, 2 de junho de 2006

Reticências

Quem disse que homem não chora?

Chora e se lambuza de sal

Quem disse que o mundo é bom?

O mundo é isto

Viver, sofrer, morrer

E ponto final

quarta-feira, 31 de maio de 2006

Sou eu

Sou eu, este ser injusto e agressivo
Tanto perverso quanto insensível
Talvez incapaz de olhar o bem
E permanecer dele cativo

Sou eu, esta papa de medo e de dor
Ora dourada, ora invisível
Que vive assombrada também
Misturando o frio e o torpor

Sou eu, isto que tudo abomina
Ser violento e irredutível
Mescla do mal e do bem
Reduto de uma alma alcalina

Sou eu, última instância
Da fé, da outrora criança
Que pobre, um dia sonhou

Sou eu, o ótimo exemplo
Alma rasgada, coração em rebento
Do mundo que nunca raiou

terça-feira, 30 de maio de 2006

A resposta

Entro no cubículo e, antes de qualquer interrupção, pergunto:

_ Vai, me diz, o que será de mim quando tudo isso acabar?

_ O que é tudo, meu filho?

_ Tudo é o destino que escolhi para mim.

_ Só depende de você. Depende de seus atos.

_ Sim, eu sei. Mas você está sendo vago. Busca outra opção aí.

_ O futuro pode ter luz ou trevas. Será o que você quiser, meu filho.

_ Porra, tem de ficar com essas respostas vagas, sem pé nem cabeça? Quero algo do tipo: você vai encontrar a felicidade suprema ou ser atormentado pela eternidade. Porra.

_ Cuidado com as palavras aqui dentro, filho. Ele pode se zangar.

_ Taí. Isso é algo que eu gostaria de ver. Vai, nego, desce aqui. Ó pra você.

_ Para que tanta ira? Por que tanto rancor?

_ Porque não há respostas. Nunca há.

_ A resposta está em você. Busque-a com fé e encontrará seu caminho.

_ Foda-se!

Chutei a porra do confessionário e saí. Padreco do caralho. Ajudou tanto quanto uma cartomante ou um porre no boteco. Tá, depois de vários porres eu consegui algumas respostas, mas a questão agora é outra. Não quero recuperar uma mulher nem me queixar da sorte. Quero saber o que será de mim quando tudo isso acabar.

Atravesso a rua, páro no bar próximo pra tomar uma e fico atento ao movimento. Olho o relógio. Faltam dez minutos. A rua entre a igreja e a praça aqui ao lado está lotada. Um suor frio desce por meu pescoço. Sigo sem resposta. Caralho, para que raios fui entrar naquele lugar? "Busque-a com fé" a puta que o pariu.

Resolvo andar pela praça. Bonita, com algumas poucas árvores, uns banquinhos com anúncios de lojas que eu nunca havia reparado e os mendigos de sempre jogando conversa fora. Faltam cinco minutos. Isso aqui precisa mudar. E vai. Puta medo que não sai de mim. A sensação de ficar sem reposta é uma angústia inesperada.

Nunca achei que faria essa pergunta diante de toda minha convicção. O lance aqui é sofrimento. Todo mundo sabe. Mas o bem supremo está perto. Bem perto. Eu sei. Será mesmo? Maldito padre que questionou minha fé. Agora até eu hesito. Pára, respira.

Encosto em uma árvore e acendo um cigarro. É o último. Amasso e jogo o maço fora. A sensação é de alívio. Dou uma tragada forte e sopro. Tudo vira fumaça e cinza. Como as pessoas podem parecer tão calmas com o mundo inteiro pirando? Bando de alienados.

Vou até o carro e pego minha mala. Falta um minuto. Aperto o passo. Sigo até o centro da praça e tiro tudo cuidadosamente. Ninguém nota minha presença. Pronto, está tudo pronto. Meu relógio dispara o alarme. É hora.

O que será de mim quando tudo isso acabar? Penso e acendo o isqueiro. Ensopado pelos vinte litros de gasolina, a chama se espalha rapidamente. Não dói, não arde. Tudo fica amarelado e lento. Na porta da igreja, o padre surge atraído pelos gritos da multidão. Ele ficou me devendo uma resposta.

domingo, 28 de maio de 2006

Uma noite

Uma noite feliz não precisa necessariamente de beijo
Pode ser feita apenas por uma presença especial
Ou um olhar ou um sorriso sincero

Uma noite feliz é como uma companhia de balé:
Tem ritmo e harmonia, diz muito sem palavras
Arrepia pela surpresa de cada passo

Uma noite qualquer tem lembranças tristes
Revividas para maturar a dor sem secar feridas
E dar um novo golpe em plena escuridão

Uma noite qualquer termina em solidão
Em se reflexir sobre o que se perdeu
Em arcar com o peso da dor
Em saber que se paga o preço de ontem

Já a noite feliz tem jeito adulto
Tem incerteza, mas esperança
Tem amizade sem cobrança
E um cheiro bom e familiar

Uma noite feliz, uma só, felizmente,
Pode dar o gosto de se viver de novo
E isso basta, por enquanto

quarta-feira, 24 de maio de 2006

E mais nada

Olha esse quarto, não tem cheiro
Quase vazio e sem retrato
Lá vive um rapaz de corpo inteiro
Lá vive um rapaz de alma aos pedaços

Vê que coração mais ressentido
Pulsa como se fosse obrigado
Será que não tem sangue esse tipo?
Será que ele é mesmo amargurado?

Minha dor é saber que essas mãos
Dizem pra você que tanto sofro
Quero me ver livre deste escuro

Quero me ver livre e não sei como

Abra agora a porta, ilumina o quarto
Deixa que o sol traga um novo dia
Chora que assim o mal escorre
Chora que ele vai e não consome

E lembra de mim quando eu morrer
Diz que eu, com toda minha alma,
Fiz você viver um pouco mais
Fiz um pouco sim. E mais nada

segunda-feira, 22 de maio de 2006

Juramento

Ela apareceu na minha frente no dia mais improvável. Eu havia saído do escritório, sufocava de calor, reclamava. Mas tive de passar no gabinete do Prefeito para deixar uns malditos documentos. O que seria uma maldição, virou uma visão do céu.

A timidez que se esconde debaixo dessa pele grossa apareceu por inteiro. Fiquei vermelho, quase não falei, mas saí satisfeito. Queria ela pra mim de qualquer jeito.

Mandei carta, mandei flores, disse gracinhas e passei perfume. Ela se aproximou e me fez suar umas duzentas vezes. Mas a oportunidade nunca veio para nós. Coisa da vida.

Com o tempo, ela, que era um sonho de mulher, virou uma amiga dos sonhos. Confidente, conselheira. Poxa, quer coisa mais frustrante para um homem? Pois bem. Aliás, pois nada bem. Mas a gente se acostuma com quase tudo. E passei a vê-la assim.

Até ontem. Naquela festa banal, quase um aniversário de criança de tanta gente chata e tanta cerveja servida em copinho plástico, ela surgiu como um cometa. Camisa branca cheia de estilo, calça jeans colada no corpo, aquele cabelo, aquele sorriso. Tomei os últimos goles da pasta de cevada que esquentava em minhas mãos e fui encarar a fera.

Ela foi simpática e mágica, como sempre. E seguiu fiel o papel de amiga-que-é-amiga-não-beija-na-boca. Há situações que exigem um trabalho hercúleo, mas algumas vezes vale a pena carregar o peso do mundo nos ombros se for o caso.

Ofereci bebida para deixá-la solta. Risadas para deixá-la leve. Um toque inesperado para deixá-la surpresa. Uma poesia batida para me mostrar culto. Silêncio para deixá-la respirar. Por fim, ofereci minha boca para que ela provasse um novo gosto.

Ela me beijou furiosamente, apertou meu corpo. Depois, quando saiu para pegar um copo, me deixou cravado no lugar. Absolutamente estático. Na volta, me olhou nos olhos, segurou minhas mãos e pediu para que eu não deixasse jamais de ouvir seus segredos. Dei meu juramento, mesmo sabendo que não há jura que se cumpra. Foi apenas a primeira de minhas mentiras.

domingo, 21 de maio de 2006

Cheiro de cravo

Estou com a cabeça abaixada, escrevendo. Mas sei que você está aqui. Eu sinto. E sei que não está só. Um arrepio corre minha espinha, meu olho fica turvo, sinto frio. Não há absolutamente nada que eu possa fazer. A não ser esperar.

Encosto na mesa, de costas para o público, tentando me esconder de vocês e do mundo. Mas sinto seu cheiro de cravo bem perto de mim. Não olho. Ouço sua voz e enterro a cabeça no chão, tal qual um avestruz.

Vocês não riem e acho isso bom. Eu também não rio, faz tempo que eu não rio. Mas minha posição não é para risadas mesmo.

"Oi, tudo bem? Tinha me visto?", você diz. "Não." Reduzo tudo a um "não". "Você está melhor?" "Sim", respondo. Mas é claro que não.

O pessimismo é algo que pode ser cultivado. Como uma plantinha no jardim. Venho regando a minha diariamente, faz uns bons meses. Uma de minhas flores é a dor. Para alguns, ela vem acompanhada de lágrimas. Para mim, é uma dormência que invade e fica.

Me afasto para dar uma olhada em vocês. Sinto vertigem e enjôo. Sei que hoje, pelo menos hoje, tenho de seguir com a cabeça abaixada escrevendo minhas pequenas impressões. Saio para caminhar. Como está frio. Sou a própria geleira na multidão fervente.

Sei que mais tarde, em casa, vou chorar. Talvez não consiga dormir. Não será a primeira noite. Nem a última. Assim a vida segue. Barulhenta e longa.