quarta-feira, 31 de maio de 2006

Sou eu

Sou eu, este ser injusto e agressivo
Tanto perverso quanto insensível
Talvez incapaz de olhar o bem
E permanecer dele cativo

Sou eu, esta papa de medo e de dor
Ora dourada, ora invisível
Que vive assombrada também
Misturando o frio e o torpor

Sou eu, isto que tudo abomina
Ser violento e irredutível
Mescla do mal e do bem
Reduto de uma alma alcalina

Sou eu, última instância
Da fé, da outrora criança
Que pobre, um dia sonhou

Sou eu, o ótimo exemplo
Alma rasgada, coração em rebento
Do mundo que nunca raiou

terça-feira, 30 de maio de 2006

A resposta

Entro no cubículo e, antes de qualquer interrupção, pergunto:

_ Vai, me diz, o que será de mim quando tudo isso acabar?

_ O que é tudo, meu filho?

_ Tudo é o destino que escolhi para mim.

_ Só depende de você. Depende de seus atos.

_ Sim, eu sei. Mas você está sendo vago. Busca outra opção aí.

_ O futuro pode ter luz ou trevas. Será o que você quiser, meu filho.

_ Porra, tem de ficar com essas respostas vagas, sem pé nem cabeça? Quero algo do tipo: você vai encontrar a felicidade suprema ou ser atormentado pela eternidade. Porra.

_ Cuidado com as palavras aqui dentro, filho. Ele pode se zangar.

_ Taí. Isso é algo que eu gostaria de ver. Vai, nego, desce aqui. Ó pra você.

_ Para que tanta ira? Por que tanto rancor?

_ Porque não há respostas. Nunca há.

_ A resposta está em você. Busque-a com fé e encontrará seu caminho.

_ Foda-se!

Chutei a porra do confessionário e saí. Padreco do caralho. Ajudou tanto quanto uma cartomante ou um porre no boteco. Tá, depois de vários porres eu consegui algumas respostas, mas a questão agora é outra. Não quero recuperar uma mulher nem me queixar da sorte. Quero saber o que será de mim quando tudo isso acabar.

Atravesso a rua, páro no bar próximo pra tomar uma e fico atento ao movimento. Olho o relógio. Faltam dez minutos. A rua entre a igreja e a praça aqui ao lado está lotada. Um suor frio desce por meu pescoço. Sigo sem resposta. Caralho, para que raios fui entrar naquele lugar? "Busque-a com fé" a puta que o pariu.

Resolvo andar pela praça. Bonita, com algumas poucas árvores, uns banquinhos com anúncios de lojas que eu nunca havia reparado e os mendigos de sempre jogando conversa fora. Faltam cinco minutos. Isso aqui precisa mudar. E vai. Puta medo que não sai de mim. A sensação de ficar sem reposta é uma angústia inesperada.

Nunca achei que faria essa pergunta diante de toda minha convicção. O lance aqui é sofrimento. Todo mundo sabe. Mas o bem supremo está perto. Bem perto. Eu sei. Será mesmo? Maldito padre que questionou minha fé. Agora até eu hesito. Pára, respira.

Encosto em uma árvore e acendo um cigarro. É o último. Amasso e jogo o maço fora. A sensação é de alívio. Dou uma tragada forte e sopro. Tudo vira fumaça e cinza. Como as pessoas podem parecer tão calmas com o mundo inteiro pirando? Bando de alienados.

Vou até o carro e pego minha mala. Falta um minuto. Aperto o passo. Sigo até o centro da praça e tiro tudo cuidadosamente. Ninguém nota minha presença. Pronto, está tudo pronto. Meu relógio dispara o alarme. É hora.

O que será de mim quando tudo isso acabar? Penso e acendo o isqueiro. Ensopado pelos vinte litros de gasolina, a chama se espalha rapidamente. Não dói, não arde. Tudo fica amarelado e lento. Na porta da igreja, o padre surge atraído pelos gritos da multidão. Ele ficou me devendo uma resposta.

domingo, 28 de maio de 2006

Uma noite

Uma noite feliz não precisa necessariamente de beijo
Pode ser feita apenas por uma presença especial
Ou um olhar ou um sorriso sincero

Uma noite feliz é como uma companhia de balé:
Tem ritmo e harmonia, diz muito sem palavras
Arrepia pela surpresa de cada passo

Uma noite qualquer tem lembranças tristes
Revividas para maturar a dor sem secar feridas
E dar um novo golpe em plena escuridão

Uma noite qualquer termina em solidão
Em se reflexir sobre o que se perdeu
Em arcar com o peso da dor
Em saber que se paga o preço de ontem

Já a noite feliz tem jeito adulto
Tem incerteza, mas esperança
Tem amizade sem cobrança
E um cheiro bom e familiar

Uma noite feliz, uma só, felizmente,
Pode dar o gosto de se viver de novo
E isso basta, por enquanto

quarta-feira, 24 de maio de 2006

E mais nada

Olha esse quarto, não tem cheiro
Quase vazio e sem retrato
Lá vive um rapaz de corpo inteiro
Lá vive um rapaz de alma aos pedaços

Vê que coração mais ressentido
Pulsa como se fosse obrigado
Será que não tem sangue esse tipo?
Será que ele é mesmo amargurado?

Minha dor é saber que essas mãos
Dizem pra você que tanto sofro
Quero me ver livre deste escuro

Quero me ver livre e não sei como

Abra agora a porta, ilumina o quarto
Deixa que o sol traga um novo dia
Chora que assim o mal escorre
Chora que ele vai e não consome

E lembra de mim quando eu morrer
Diz que eu, com toda minha alma,
Fiz você viver um pouco mais
Fiz um pouco sim. E mais nada

segunda-feira, 22 de maio de 2006

Juramento

Ela apareceu na minha frente no dia mais improvável. Eu havia saído do escritório, sufocava de calor, reclamava. Mas tive de passar no gabinete do Prefeito para deixar uns malditos documentos. O que seria uma maldição, virou uma visão do céu.

A timidez que se esconde debaixo dessa pele grossa apareceu por inteiro. Fiquei vermelho, quase não falei, mas saí satisfeito. Queria ela pra mim de qualquer jeito.

Mandei carta, mandei flores, disse gracinhas e passei perfume. Ela se aproximou e me fez suar umas duzentas vezes. Mas a oportunidade nunca veio para nós. Coisa da vida.

Com o tempo, ela, que era um sonho de mulher, virou uma amiga dos sonhos. Confidente, conselheira. Poxa, quer coisa mais frustrante para um homem? Pois bem. Aliás, pois nada bem. Mas a gente se acostuma com quase tudo. E passei a vê-la assim.

Até ontem. Naquela festa banal, quase um aniversário de criança de tanta gente chata e tanta cerveja servida em copinho plástico, ela surgiu como um cometa. Camisa branca cheia de estilo, calça jeans colada no corpo, aquele cabelo, aquele sorriso. Tomei os últimos goles da pasta de cevada que esquentava em minhas mãos e fui encarar a fera.

Ela foi simpática e mágica, como sempre. E seguiu fiel o papel de amiga-que-é-amiga-não-beija-na-boca. Há situações que exigem um trabalho hercúleo, mas algumas vezes vale a pena carregar o peso do mundo nos ombros se for o caso.

Ofereci bebida para deixá-la solta. Risadas para deixá-la leve. Um toque inesperado para deixá-la surpresa. Uma poesia batida para me mostrar culto. Silêncio para deixá-la respirar. Por fim, ofereci minha boca para que ela provasse um novo gosto.

Ela me beijou furiosamente, apertou meu corpo. Depois, quando saiu para pegar um copo, me deixou cravado no lugar. Absolutamente estático. Na volta, me olhou nos olhos, segurou minhas mãos e pediu para que eu não deixasse jamais de ouvir seus segredos. Dei meu juramento, mesmo sabendo que não há jura que se cumpra. Foi apenas a primeira de minhas mentiras.

domingo, 21 de maio de 2006

Cheiro de cravo

Estou com a cabeça abaixada, escrevendo. Mas sei que você está aqui. Eu sinto. E sei que não está só. Um arrepio corre minha espinha, meu olho fica turvo, sinto frio. Não há absolutamente nada que eu possa fazer. A não ser esperar.

Encosto na mesa, de costas para o público, tentando me esconder de vocês e do mundo. Mas sinto seu cheiro de cravo bem perto de mim. Não olho. Ouço sua voz e enterro a cabeça no chão, tal qual um avestruz.

Vocês não riem e acho isso bom. Eu também não rio, faz tempo que eu não rio. Mas minha posição não é para risadas mesmo.

"Oi, tudo bem? Tinha me visto?", você diz. "Não." Reduzo tudo a um "não". "Você está melhor?" "Sim", respondo. Mas é claro que não.

O pessimismo é algo que pode ser cultivado. Como uma plantinha no jardim. Venho regando a minha diariamente, faz uns bons meses. Uma de minhas flores é a dor. Para alguns, ela vem acompanhada de lágrimas. Para mim, é uma dormência que invade e fica.

Me afasto para dar uma olhada em vocês. Sinto vertigem e enjôo. Sei que hoje, pelo menos hoje, tenho de seguir com a cabeça abaixada escrevendo minhas pequenas impressões. Saio para caminhar. Como está frio. Sou a própria geleira na multidão fervente.

Sei que mais tarde, em casa, vou chorar. Talvez não consiga dormir. Não será a primeira noite. Nem a última. Assim a vida segue. Barulhenta e longa.